Vi America America umas seis ou sete vezes. E não sei se foi por isso que a certa altura me começou a parecer que este é um filme sobre repetição.
Nos últimos meses tenho pensado muito em comédia e em tradução. E não sei se foi por isso que a certa altura me começou a parecer, ao escrever isto, que a repetição e essas duas coisas tinham algo em comum. No cerne dessa coincidência, um paradoxo: ser o que já não se é. Em comédia, há quem fale de subversão – por exemplo, o Hamlet de Tom Stoppard, Rosencrantz and Guildenstern Are Dead, considerado uma comédia fundamentalmente, e antes de qualquer outro dos seus vários cómicos internos, devido ao facto de ser uma deformação da peça de Shakespeare, o Hamlet sob outro ângulo. Em tradução, há quem fale de équivalence sans identité (Ricœur) – pain e Brot, para usar o exemplo clássico de Benjamin. E, se invertermos a ordem dos termos, não é isso, afinal, que é uma repetição?
Observemos os seus limites e coincidências com conceitos próximos ou hipónimos – ela pode ser entendida como uma categoria vasta que engloba recursos diferentes, desde a anáfora ao Leitmotiv. Mas digamos que a repetição per se ocorre ao nível mais ínfimo, o das palavras, dos sons: então temos tempo. Essa repetição, a básica – que nos faz pensar em nós e no início dos tempos (humanos – que é como quem diz, do estilo. Rotina não é repetição, não neste sentido performativo, ou seja, activo, ou seja, consciente, ou seja, transformador): como foi que a repetição de um grito passou de necessidade a ênfase, ou talvez, como foi que o tornar a fazer passou a ser repetir, que o gesto do ensaio passou a integrar a coreografia, quando a mãe está mesmo à frente e se continua a gritar por ela como se não se a visse? O que fez isso por quem grita? E pela mãe? – essa repetição básica, dizia, delimita um espaço-tempo ou é enformada por ele. Talvez sejam mutuamente constitutivos: a repetição é produzida e reconhecida em função da proximidade, maior ou menor, entre as instâncias que a compõem, e simultaneamente esta proximidade estabelece-se como resultado da própria repetição. Assim, dizer “America America” define o curto espaço-tempo de duas palavras, que é onde cabe e opera, num movimento como que de reacção a esse espaço-tempo, o efeito de a primeira palavra ser também a segunda palavra.
A repetição é uma coisa já não sendo ela mesma. America é o nome de um continente, de um país talvez, de uma terra. Transporta para lá. Um segundo America é uma ideia de alguma coisa a fazer nessa/dessa/com essa terra: de alguma forma, transporta para fora de lá. A falta de pontuação no título de America America, filme de Elia Kazan de 1963, configura uma pureza absoluta do recurso: a relação estabelecida entre as suas duas partes é mais do que paratáctica, meramente sonora. E o cerne do sentido reside nessa reverberação: repetição ressignifica. Eis o projecto do filme contido no seu título, e a versão atómica dos seus processos estilísticos e narrativos.
Em America America, há repetições como a do título, ao nível das palavras. Grande parte das falas contém uma repetição ou é repetida. Essa tendência é estabelecida desde os primeiros diálogos do filme: “What else? What else in America?”, pergunta Stavros a Vartan, que, em resposta, oferece algumas das frases, quais mantras, que se repetirão noutros momentos do filme: “Come on, you. Let’s go, you. Let’s go with the help of Jesus”. “Be seated. Be seated, please. Be seated, please”, diz o Governador, ao entrar na reunião que convocou com o seu conselho. “Stop!”, repete o oficial turco quando Stavros e Vartan estão já parados, por sua primeira ordem, com o gelo a derreter na carroça. “Help yourself, sir, help yourself”, responde-lhe Vartan, ao que Stavros acrescenta: “Sir! Your honor! Help yourself, sir, help yourself”. Isto nos primeiros cinco minutos do filme, como se se activasse o metrónomo: eis a cadência e o regime dos diálogos. Mas que dispositivo é este?
Movendo-nos ao nível das palavras, há uma evidência incontornável: este é um filme falado em inglês a fingir que não é falado em inglês, ou melhor, a fingir que é falado em não-inglês. Em que língua se comunicam Stavros e Vartan? Grego? Arménio? Turco? Aparentemente, não interessa. Kazan rasga os sentidos das formas que os moldam: como é hábito em Hollywood (víramos já Emiliano Zapata, entre tantos outros, falar inglês). A questão parece-me mais profunda do que o incómodo das legendas (essas, que suporiam também a traduzibilidade): não se trata só de tornar um conteúdo acessível, mas sim de veicular um conteúdo que é intrínseca e fatalmente familiar, diria até doméstico. Mais do que uma ideia americana dos gregos, arménios e turcos da Anatólia do século XIX, a própria América reflectida neles, como um acolhedor espelho. Quando, no final, Stavros chega a Ellis Island, a língua que se fala é a mesma de todo o filme mas de repente ele não a entende, e o espectador até se esquece que esteve o tempo todo a ouvir a sua língua, de repente convence-se de que esteve a ouvir outra coisa qualquer. O inglês faz as vezes do que quer que seja, isto é, há só o inglês e o não-inglês – que, por sinal, é também significado em inglês.
A repetição funciona, assim, desde logo como um disfarce, uma forma de vestir o familiar com uma roupagem estranha, de sinalizar uma (falsa) alteridade, um povo mais lento, mais ritualístico – não esquecer que o ponto de referência é sempre os Estados Unidos da América, “here”, como diz a voz de Kazan nos últimos segundos do filme, embora as imagens nos mostrem a Anatólia. O espectador deve sentir-se sempre em casa, deve ser lhe garantida uma sensação permanente de segurança. É também nesse sentido, embora inversamente, que trabalha a repetição da canção grega Τ’αστέρι του βοριά, “A Estrela do Norte”, composta por Manos Hatzidakis, como toda a banda sonora do filme, com letra de Nikos Gatsos, sobre a promessa do desconhecido e o sentimento agridoce de deixar a pátria (Κι εσύ χαμένη μου Πατρίδα μακρινή / θα γίνεις χάδι και πληγή / σαν ξημερώσει σ’άλλη γη: “E tu, de mim perdida Pátria longínqua / tornar-te-ás afago e ferida / quando noutra terra nascer o dia”): aqui, a familiaridade da melodia, que se ouve, mais ou menos evidente, em diversos momentos, compensa o barbarismo da letra e produz o conforto do reconhecimento.
A um nível mais estrutural, pontuando a narrativa, a recorrência de cenas de dança, em particular as protagonizadas por homens. A primeira (00:13:02 – 00:14:20), icónico catalisador do desejo de Stavros, a dança de Vartan; a segunda (2:05:30 – 2:06:45), a dança de Mr. Kebabian; e a terceira (2:34:49 – 2:37:26), a valsa interrompida pelo próprio Stavros, no barco que se aproxima de Nova Iorque, e transformada numa dança macabra, durante a qual se dá a repetição literal de cenas do filme, sob a forma de flashback.
Estas três cenas geram, mediante a sua configuração como repetição, um espaço-tempo tripartido do desejo. Na primeira, que é praticamente a última de Vartan, o seu legado também, ele, altivo e orgulhoso, temerário, olha os turcos em desafio, e vai estalando os dedos com cada vez mais força, intimando Stavros, como que já dizendo o que em seguida diz mesmo. Langoroso e não seguro, Stavros levanta-se e vai levantando também os braços, e, perante o silêncio tenso em volta, vai crescendo na dança. “Let’s go. Let’s go. Let’s go”, inflama Vartan, e, num gemido quase orgástico, Stavros: “America. America”. E as últimas palavras de Vartan, quase uma dívida para Stavros: “Come on, you. Let’s go, you. If we don’t go now, we’ll never get another chance”. Aqui, a sedução consolidada, a união, de alguma forma a consubstanciação. Veremos ainda Vartan matar um militar turco num salto de facada – tal como Stavros matará Abdul.
A obsessão de Stavros, que é também um desapego, como se vê na sua recusa de possibilidades melhores (como seria o casamento com Thomna) mas também na insensatez, na frivolidade e na imprudência da sua viagem, é questionada, desafiada, posta à prova. Stavros é oprimido pelo seu contexto, pela expectativa de conformidade, por uma mãe amargada e um pai submisso, pela violência; e é totalmente abduzido por uma quimera, um exercício de imaginação:
“– You say in America they have mountains bigger than this one?
– In America everything’s bigger.
– What else? What else in America?
– What are we waiting for? Come on, you; let’s go, you. Let’s go with the help of Jesus.”
Este é um rapaz que quer quebrar um ciclo, que foge da repetição – seja a de seu pai (“I hope to God you’re not gonna be like your father”, pragueja a avó, para depois se desiludir: “already you got his smile. Well, what are you gonna do? (…) You’re just like your father (…)You’re not going to America, you’re your father’s son. Go home. Be what you are”), seja a do rico Sinnikoglou, o potencial sogro que a certa altura lhe descreve o futuro minuciosamente, até ao botão das calças, totalmente previsível – e nessa fuga cai noutra, outra hipnose: a América é America America, um sonho desconhecido, um conceito, uma ideia, que pouco terá de América.
A segunda cena, em que Mr. Kebabian dança “just like a woman” (ecoando um comentário ouvido na primeira, de Vartan), é a última oportunidade, o último confronto com a inconsequência do seu desejo: o único americano que conhece, a personificação do seu ideal, tão ridículo, quase repugnante, desprezado pela mulher, por todas as mulheres presentes, alheias à sua diversão triste e interessada. Em seguida, tal como acontece na cena de Vartan, a articulação verbal daquilo que a dança já contara, a miséria – agora pela Sra. Kebabian, que lhe relata como se pode ser desgraçado na América, demonstrando que, ao contrário do que Stavros imagina, não há nada inerente àquela terra que garanta a felicidade ou a glória. Mas um eventual efeito dissuasor quer do deslustre de Mr. Kebabian, quer dos avisos (sob a forma de discretos apelos ou convites) da Sra. Kebabian dependeria de uma fragilidade que, apesar de presumível a priori, se nos mostra sucessivamente, ao longo do filme, ausente do carácter de Stavros: o apelo feminino. Para o protagonista, a mulher, como objecto de desejo, não se aproxima minimamente nem condivide energias ou atenções com o seu verdadeiro e último querer. Que Mr. Kebabian não desperte nem mantenha interesse ou afectos femininos não significa nada para Stavros. Da mesma forma, o que o leva a beijar a mão da Sra. Kebabian não é uma compaixão nem uma empatia genuínas, mas muito simplesmente a inépcia de quem não entendeu nada (“How could you understand?”, exclama ela): ela diz “não vás (embora eu te queira)”, ele só ouve “chega-te aqui, que ficas mais perto [da América]”.
Na terceira cena, que é talvez um despontar de maturidade em Stavros, a primeira vez que lhe vemos uma energia sexual activamente dirigida a uma mulher, ele confronta-se com as suas escolhas, pela primeira vez se questiona, agora, que está quase a chegar. Os americanos da primeira classe dançam uma valsa idílica, que, aleluia, lhe desperta raiva, talvez inveja, mas sobretudo a consciência aguda, pela primeira vez, de que não é um deles, de que provavelmente nunca o será – a sua dança terrorista é uma manifestação furibunda de alteridade, que, como não poderia deixar de ser, acaba por lhes provocar o riso, e depois a compaixão. E é no abraço da americana que morre, finalmente homem, hélas, Stavros Topouzoglou – não no nascimento, ou baptismo, de Joe Arness.
Esta fusão – mais uma consubstanciação operada pela dança – entre Stavros e Hohannes é significada, além da efectiva troca de identidades, pela coabitação inusitada do espaço do flashback: primeiro as memórias de Thomna, no olhar de Stavros, depois a recordação da generosidade de Stavros no momento em que conheceu Hohannes, essa num plano que não é subjectivo e que por isso nos lembra que o que se nos está a apresentar não é só a memória da personagem, mas sim, outra vez, uma cena que já vimos. E que agora, claro, cobra outro sentido. Prestes a chegar, já as luzes de Nova Iorque à vista, a evidência do fracasso, mas ao mesmo tempo de que já é tarde demais para voltar atrás, para mudar de ideias, para desistir do sonho, abate-se como uma prisão: a circularidade do tempo, a impossibilidade de lhe escapar. Hohannes não chega a pisar solo americano; Stavros morre com o seu ideal, ao perceber que a América afinal é só aquilo. Estes flashbacks constituem uma chave essencial de leitura do filme, porquanto estabelecem a insuficiência e o desencanto em que assentam o suposto êxito da viagem, a suposta glória do sonho americano, o aparente júbilo do protagonista, que beija o chão em sinal de resignação, de submissão – igual a seu pai, afinal (as mulheres deste filme, nomeadamente a mãe e a avó, parecem cumprir a função do sábio Velho do Restelo – antipáticas às restantes personagens, ao seu projecto, quiçá ao público, mas as mais avisadas, sagazes e eloquentes). Esse passo ao desengano é uma digestão, uma dor de crescimento operada mediante a repetição.
Kazan diz, numa entrevista ao New York Times de Janeiro de 1963, que sentiu, durante as rodagens, “quase dolorosamente que os homens têm que ter ideais. Se não os tiverem, inventam-nos”. Eis a America America de Stavros, uma fantasia. America America é justamente não a América. E no elogio que se costuma ler no filme, e que o próprio Kazan faz do país, e na lealdade do seu maculoso passado, há contudo, quer-me parecer, uma suspeita, uma intuição que talvez não queira explorar muito, uma conformada crítica muda. Ou pelo menos o espaço que ele dá, me parece, em todos os seus filmes, ao outro, para que se defenda.
Margarida Assis