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PEDRO HUSSAK / Quatro regimes da imagem: ilusória, encarnada, dialética e xamânica

PEDRO HUSSAK / Quatro regimes da imagem: ilusória, encarnada, dialética e xamânica

A publicação, primeiramente em francês em 2010 e depois no Brasil no ano de 2015, de A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami de Davi Kopenawa e Bruce Albert, constitui um evento que certamente ainda levará tempo para que se dimensione o tamanho de sua proporção. Ciente da importância do livro, e valendo-se da possibilidade de realizar encontros por meio de plataforma virtual,  a rede internacional de pesquisa “Cosmoestéticas do Sul”  que conta além de mim com a participação das pesquisadoras argentinas Gabriela Milone, Guadalupe Lucero, Paula Fleisner, Noelia Billi, a portuguesa Salomé Lopes Coelho e a brasileira Carla Milani Damião, decidiu fazer um estudo aprofundado, cujos resultados foram apresentado em novembro de 2021 no seminário Sonho, mercadoria, mundo: três hipóteses para pensar “A queda do Céu”[1] – organizado por instituições brasileiras e argentinas como a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, a Universidade Federal de Goiás, a Universidad de Buenos Aires, a Universidad Nacional de Córdoba e a Universidad Nacional de las Artes –, que é a origem do dossiê do qual este artigo faz parte.

Embora eu tenha me interessado por todas as questões levantadas pelo livro, senti-me particularmente inclinado, dado que sou pesquisador na área de estética, pela noção de imagem (utupë em língua yanomami) exposta pelo xamã. À medida que eu elaborava o seu sentido, imediatamente comecei a estabelecer comparações com outras noções de imagem com as quais eu estava acostumado a lidar. Esse meu impulso, é verdade, é revelador de uma tentação muito comum, para quem tem uma formação filosófica, de buscar sempre em A queda do céu identidades e diferenças com relação ao pensamento ocidental, o que leva frequentemente a uma má compreensão das questões levantadas pelo livro, já que isso tende a desconsiderar a singularidade do pensamento de Kopenawa. A sua leitura exige, antes de mais nada, um espírito livre de pré-julgamentos e sobretudo uma pré-disposição para ouvir aquilo que o xamã yanomami quer transmitir a nós outros brancos.

No entanto, mesmo com os riscos que essas comparações possam gerar, acreditei que poderia ser interessante estabelecer um quadro no qual essa concepção antropológica/contra-antropológica fosse delimitada em face de outras concepções ocidentais da imagem de modo que organizei mentalmente um esquema com quatro regimes sobre cuja definição discutirei neste artigo.

Se mobilizo o termo “regime”, naturalmente o faço inspirando-me em Jacques Rancière para quem o termo aponta não para o rigor de uma teoria, mas para um conjunto de noções gerais que circulam socialmente.[2] Desse modo, embora estejam associados a determinados autores, os regimes propostos aqui não constituem um aprofundamento, mas apenas um delineamento de certas concepções gerais discutidas a partir de certas ideias dos filósofos citados.

Ainda no que toca aos regimes, é preciso dizer que não há de minha parte nenhuma “vontade de sistema”, dado que não há nenhuma pretensão de abarcar uma totalidade, portanto aos quatro regimes, pode-se acrescentar outros futuramente, se for o caso.

Neste texto, procuro delimitar cada regime separadamente, menos preocupado em discutir o tema de sua historicidade do que em mostrar sua conexão a diferentes áreas do conhecimento humano: o primeiro regime deve ser atribuído à filosofia; o segundo à teologia cristã; o terceiro à sociologia da arte e o último a uma concepção antropológica ou contra-antropológica da imagem. Os quatro regimes referentes a uma área específica do conhecimento humano que serão explicados e analisados são os seguintes: a imagem ilusória; a imagem encarnada; a imagem dialética e a imagem xamânica.

Naturalmente, o interesse maior suscitado pela leitura recente de A queda do céu conduzir-me-á a avançar na caracterização do último regime sobre cujo sentido discutirei, procurando fazer algumas ponderações com relação à sua interpretação dentro do quadro de uma ontologia geral à qual contraponho uma ligada a uma ontologia da imagem dentro de um âmbito comparativo com outras concepções de imagem, expressas nos demais regimes tratados.

A imagem ilusória

A exortação do cineasta Harun Farocki a “desconfiar das imagens”[3] encontra eco em uma longa tradição de compreensão da imagem que remete ao livro VII d’A República. Nessa passagem, Platão narra o famoso “mito da caverna” que paradoxalmente consiste em uma imagem usada para criticar justamente a esfera das imagens. Na narrativa, as imagens são associadas a sombras que são vistas por prisioneiros que, por estarem presos pelo pescoço, não podem virar a cabeça e notar que, na verdade, trata-se de projeções na parede da caverna de objetos que passam em frente a uma fogueira que está atrás deles. Portanto, os prisioneiros não têm acesso aos mecanismos que produzem a ilusão das sombras, o que reflete a preocupação de Platão com a atuação pública de poetas e sofistas que se valem das imagens a fim de manipular os cidadãos para seus próprios interesses.

O antídoto que o filósofo encontra para livrar-se das sombras consiste exatamente na reflexão filosófica que no mito é figurado no fato de que um dos prisioneiros consegue libertar-se dos grilhões e depois de um longo percurso – uma analogia do uso da dialética – consegue sair da caverna. Após ter seus olhos ofuscados, ele pode contemplar o sol que, para Platão, consiste na metáfora para a verdade. O ascetismo filosófico é o que dá os instrumentos, ou seja, o arcabouço conceitual, para criticar e desmascarar os simulacros que os prisioneiros consideram ser uma verdade. Assim, o filósofo que volta à caverna para tentar libertá-los de seus grilhões acaba tendo o mesmo destino do mestre de Platão, Sócrates: ele é ridicularizado e depois morto pelos prisioneiros. 

Nesse primeiro regime, as imagens são cópias malfeitas de um modelo verdadeiro. Desse modo, há uma contraposição entre o invisível e o visível na qual o primeiro âmbito expressa a verdade da Ideiainvisível que deve impor-se à falsidade das imagens visíveis. Essa contraposição implica igualmente no estabelecimento de uma relação entre os simulacros e o âmbito da legibilidade já que o texto filosófico deve criticar o caráter ilusório das imagens, encontrando o âmbito da verdade graças ao uso de um pensamento articulado conceitualmente.  

Não é de se estranhar que em uma cidade governada pelo filósofo, tal como propõe Platão, o poeta, o criador de imagens, deva ser expulso. O poeta é aquele que “fala do que não sabe”, portanto, um mau pedagogo. Em um outro diálogo, Ion, o Sócrates platônico critica Homero, argumentando que o poeta fala da guerra, mas não tem o saber sobre guerra, portanto seu discurso deve ser corrigido por quem tem a legitimidade para falar desse assunto, nomeadamente o especialista em guerras, o general.   

 Se o discípulo de Platão, Aristóteles, reabilita a mimese, dando-lhe um caráter positivo para a política na medida em que os seus efeitos deletérios podem ser anulados porque a ficção pode gerar uma catarse e devolver ao cidadão a prudência necessária para o exercício da política, isso não muda em nada a caracterização desse regime, pois o que é importante aqui é o fato de imagem ser associada à falsidade. Apenas que há uma hierarquização entre as imagens, dado que algumas delas são elevadas a um grau superior de contemplação que o ocidente chamou de arte

Um dado interessante a ser considerado é o fato de que a concepção platônica, mesmo que tacitamente, continua a influenciar teorias, inspiradas na filosofia marxista, acerca da alienação causada pelas imagens. Essas teorias adotam o pano de fundo platônico para analisar o destino da imagem, principalmente a partir do começo do século XX, em que, graças às novas técnicas de reprodução, passaram a ter uma circulação nunca antes vista. Desse modo, o espectador contemporâneo é submetido a um choque, como diria o filósofo alemão Christoph Türcke em seu livro Sociedade excitada, uma vez que ele está sujeito a um bombardeio audiovisual intenso em função das inúmeras plataformas de circulação da imagem que povoam a sociedade atual. 

 Para explicar essa realidade, foram criados um sem-número de conceitos, dos quais eu destacaria a imagem espetacular de Guy Debord e a Tela total de Jean Baudrillardque embora tenham diferenças importantes entre si, guardam um pano de fundo comum: o excesso de imagens na contemporaneidade leva a uma confusão que faz com que aos poucos o real seja substituído pelo virtual. Enquanto Baudrillard diz que vivemos em uma época dominada pelos simulacros, Guy Debord considera que o espetáculo promove uma separação do sujeito com relação à sua práxis, propondo um abandono da esfera da imagem com o intuito de recuperar a ação politicamente orientada. 

O recente crescimento da extrema direita no mundo e uso das estratégias de comunicação formuladas por Steve Bannon recolocou o problema da falsidade das imagens em novos termos. A circulação das assim chamadas Fake News teve na imagem um instrumento privilegiado para vincular “teorias da conspiração”, teses negacionistas com relação à ciência e outras informações falsas a fim de gerar confusão no ambiente político dos países. Informações passadas por memes sem uma checagem prévia favoreceu a criação de certas “bolhas de informação” nas quais os sujeitos veem suas crenças prévias confirmadas muitas vezes pela montagem de uma imagem com uma legenda que efetivamente produz um sentido, mas que pode ser evidentemente falso. A formação dessas “bolhas” naturalmente causa um grande problema para a política na medida em que o fechamento dos grupos em suas próprias crenças impede o diálogo público plural que é uma das condições da democracia.

 A Imagem encarnada

No seu livro Imagem, ícone, economia: fontes bizantinas do imaginário contemporâneo, Marie-José Mondzain ao analisar as duas crises iconoclastas em Bizâncio – provocadas pela tensão entre o poder imperial e o poder que os monges alcançavam graças à confecção dos ícones religiosos que competiam com a imagem do Imperador  –, sustenta que os grandes debates em torno do problema da imagem no ocidente devem ser encontrados nos dois concílios de Nicea em que se discutiu teses relacionadas à iconoclastia/iconofilia e que finalmente, por decidir pelo caráter imagético da religião cristã, acabou por definir o próprio destino da imagem.  

Em resumo, tratava-se de discutir se o uso das imagens no cristianismo cairia sob o sigo da idolatria, tão criticada no velho testamento, como se pode verificar na passagem – em que também o texto deve corrigir a imagem – na qual Moises, ao retornar do Monte Sinai com as tábuas dos Dez mandamentos, depara-se com a adoração ao Bezerro de Ouro. O que Mondzain mostra é que os teóricos que defenderam a tese vitoriosa de que o Cristianismo deveria ser uma religião iconófila argumentaram que a imagem expressaria o próprio sentido do Cristianismo, a saber, que a imagem é encarnação. Mudando a maneira de entender a sua legibilidade, já que nesse caso o verbo se faz carne, a imagem seria a encarnação de uma realidade invisível em uma matéria visível, o que muda consideravelmente a relação platônica entre o “modelo verdadeiro” e o “simulacro”. Aqui, ao contrário, o âmbito do visível mantém uma relação de remissão com o modelo verdadeiro invisível, de modo que ao remeter ao invisível, a imagem passa a ser um polo de tensão entre o concreto e o abstrato e entre o particular e o universal.

Dentro deste regime, encontra-se Plotino que pensa a obra de arte usando o par aristotélico de matéria e forma para sustentar que o artista, após contemplar o Belo transcendente, precisa colocar uma forma em uma matéria amorfa de modo que a obra deve expressar uma tensão entre uma parte espiritual leve que ao mesmo tempo em que quer libertar-se da parte material pesada, precisa dela para poder encontrar uma expressão. Também Hegel quando define a arte como a manifestação sensível da Ideia insere-se nesse regime, pois o que ele chama de arte romântica constitui justamente a arte cristã que produz um universal concreto no qual, diferente da arte clássica, em que há uma harmonia entre a Ideia e sua manifestação sensível, há também uma tensão entre as duas esferas já que a primeira quer se livrar da segunda, conduzindo ao fenômeno que ele caracterizou como a morte da arte.

Contemporaneamente, há reflexos importantes dessa concepção em autores, como a própria Mondzain que armada com esse instrumental teórico sobre a imagem faz uma reflexão magnífica sobre as imagens do atentado de 11 de setembro às Torres Gêmeas em Nova Iorque, publicada no livro As imagens podem matar?. Resumindo seu pensamento, ela vai justamente criticar Debord e Baudrillard para sustentar que o mundo contemporâneo não é rico, mas pobre em imagens. Ela levanta a hipótese de que apelando para a articulação entre o visível e o invisível como ocorre na imagem cristã, pode-se pensar uma compreensão mais ampla do significado da imagem que ultrapasse o âmbito da mera visualidade. De mais a mais, ao contrário de quem hipostasia sua importância na sociedade contemporânea, ela argumenta que a imagem sempre teve papel central na cultura. Ela abre seu livro O comércio das imagens tratando dessa questão: Escuta-se dizer que a imagem encontra-se em uma nova situação desde a invenção da fotografia e depois do cinema e sobretudo por causa do desenvolvimento dos media e de todas as técnicas de produção e de difusão icônica que nós conhecemos. Teria ocorrido em um século e meio uma inflação da imagem. Eu afirmaria ao contrário duas coisas: em primeiro lugar, que a presença da imagem e o reconhecimento de seus poderes se estendem há milênios e que, há dois mil anos, sua instalação foi largamente legitimada e permite falar de “iconocracia”, se eu tivesse que designar com esse neologismo o império da imagem sobre os espíritos e sobre os corpos; eu acrescentaria, em segundo lugar, que pela primeira vez talvez a imagem corra um grave perigo e ameaça de desaparecer sobre o império das visibilidades. Há cada vez menos imagens.[4] 

Ao defender que a imagem não se limita ao visual, a autora considera que ela nunca é unívoca e justamente porque estabelece uma ponte com o invisível, fornece a abertura para a imaginação do espectador, operando uma função reflexiva e emancipatória, e não apenas alienante, como se pode ver no primeiro regime.

Nessa mesma linha de estabelecimento da relação entre o visível e o invisível, o historiador da arte Georges Didi-Huberman, em O que vemos, o que nos olha, vai propor uma leitura inovadora da arte minimalista dos anos 1960, ao comparar seus cubos brancos e blocos de pedra a tumbas. Contrariando, dessa forma, a leitura canônica que vai sustentar que essa expressão artística limita-se a fazer enunciados tautológicos, o historiador da arte vai falar na dimensão da crença que instaura uma dimensão invisível diante das esculturas características daquele movimento.  

Já Jacques Rancière, em textos como O destino das imagens, A imagem intolerável e figuras da história, vai articular o visível e o invisível na imagem de uma maneira um pouco diferente de Mondzain, propondo uma abordagem sintomatológica que, em poucas palavras, consiste em entender que mostrar alguma coisa significa ao mesmo tempo esconder outra. Portanto, toda análise que não reduza a imagem à sua dimensão visível, mas que incorpore o invisível deve levar em conta que tipo de escolha está envolvida na decisão de mostrar que, como foi dito, consiste sempre ao mesmo tempo em esconder. Em Figuras da história, Rancière analisa aquela que é a primeira imagem da história do cinema, realizada pelos irmãos Lumière em 1895: A saída dos operários da fábrica Lumière, refletindo sobre o porquê de os inventores da sétima arte, que também eram industriais, terem escolhido esse momento no qual os operários saem da fábrica, após o fim da jornada de trabalho: justamente o visível da saída da fábrica encobria o invisível daquilo que ocorria dentro da fábrica – a dureza e a servidão do trabalho.

Não deixa de ser interessante que a primeira imagem do cinema tenha sido justamente um sintoma daquilo que o cinema tornou-se ao longo do século XX: a saída dos operários da fábrica significa o encaminhamento para os momentos de lazer nas horas livres entre as jornadas de trabalho dos quais o cinema, a grande arte das massas como queria Walter Benjamin, veio a preencher.

A imagem dialética

Walter Benjamin pensou a imagem dialética como uma forma de contar a História, abrindo mão da ilusão de totalidade de “relatar o que realmente ocorreu”, favorecendo a ideia de que o passado toca as gerações presentes por meio de vestígios e fragmentos. Crítico da ideia de progresso na história, o pensador alemão cria o conceito de dialética na imobilidade (Dialektik im Stillstand) para pensar a suspensão do continuum do movimento dialético da história, produzindo imagens que congelam momentos nos quais embora a tensão dos opostos seja a maior possível, não há uma síntese resolutiva final. Como exemplo de imagem dialética, o filósofo alemão menciona os tiros dados contra os relógios nas torres durante a revolução francesa, parando o tempo para dar início a uma nova era:

os calendários não marcam o tempo do mesmo modo dos relógios. Eles são monumentos de uma consciência histórica […] A Revolução de julho registrou um incidente em que essa consciência se manifestou. Terminado o primeiro dia de combate, verificou-se que em vários bairros de Paris, independentes uns dos outros e na mesma hora, foram disparados tiros contra os relógios localizados nas torres.[5]

 A imagem dialética entendida como aquela que coloca em tensão elementos contrários teve enorme repercussão nas práticas artísticas no século XX das quais eu citaria dois exemplos: em primeiro lugar, a teoria da montagem; em segundo, a colagem dadaísta e surrealista.

Formulada pelo cineasta Serguei Eisenstein no auge do período revolucionário russo, a teoria da montagem foi inspirada nos ideogramas japoneses que basicamente consistiam em juntar duas imagens formando um terceiro sentido, diferente daqueles que cada imagem possuía isoladamente. A teoria foi posta em prática em filmes como Outubro e O encoraçado Potemkim que cumpriram uma importante função ao mesmo tempo artística e propagandística dos ideais revolucionários.

Já o procedimento da colagem usado por movimentos como o Dadaísmo e o Surrealismo trabalhavam com imagens pré-existentes de revistas ou jornais por exemplo, que eram fragmentadas e depois coladas umas ao lado das outras, produzindo novas possibilidades de sentido, principalmente ao tencionar imagens opostas, criando uma dialética entre as elas. 

Adepto desse procedimento no Brasil, Glauber Rocha, em O Dragão da maldade contra o santo guerreiro, cria uma imagem memorável, ao colocar Antônio das mortes, o “matador de cangaceiros”, andando em uma estrada com a concha da Shell atrás, ou seja, ao contrapor em uma imagem uma personagem mitológica e o símbolo capitalista da civilização petróleo. Dessa forma, o cineasta conseguiu sintetizar em uma imagem os debates que mobilizavam aqueles que nos anos 50/60 pensaram o país a partir da dialética entre a sua dimensão arcaica e o esforço por um rápido “progresso”, como queriam as diferentes vertentes à direita e à esquerda do assim chamado “nacional desenvolvimentismo”.

Filha de uma compreensão materialista da realidade, a imagem dialética não comporta uma relação com o invisível, e diferente do primeiro regime, ela reivindica uma relação com a verdade que neste caso nasce não de uma remissão a uma dimensão transcendente, mas do choque causado no espectador pela tensão dos elementos opostos articulados na imagem. Nesse sentido, a imagem dialética procura afastar-se da dimensão alienante da imagem ao produzir, graças a esse choque, uma estranheza no espectador com o intuito uma reflexão crítica sobre a sociedade na qual ele está inserido. Portanto, diferentemente da imagem ilusória, a imagem dialéticapossui uma pretensão eminentemente emancipatória. 

A imagem xamânica

Publicado na França pelo antropólogo Phillipe Descola no final do ano de 2021, Les formes du visible propõe uma definição de imagem que pode ser resumida da seguinte forma: tornar visível coisas invisíveis.[6] Com essa formulação, é possível entender aquilo que diz Davi Kopenawa em seu livro, escrito em parceria com o antropólogo Bruce Albert, A queda do céu, sobre o que os yanomamis entendem como a imagem utupë, que, constitui a dimensão visível acessada pelo uso de uma substância alucinógena, no caso, a yãkoana.

Assim como Kopenawa diz que os espíritos da floresta “existem” embora os brancos não possam vê-los, Descola vai dizer que um físico garante que existem “partículas” em um acelerador de partículas, embora não seja possível vê-las.[7] Por isso, deve-se refinar a formulação inicial do antropólogo, inclusive para distingui-la do regime ligado à imagem encarnada: as “coisas invisíveis” são invisíveis apenas para os brancos e para os não xamãs. Para os xamãs, ao contrário, elas são bastante visíveis e mesmo tangíveis, constituindo aquilo que Luis Hirano, que analisou tão bem os desenhos feitos por Kopenawa, chamou, na esteira de Peter Gow, de cinema da floresta.[8] Se o xamanismo, tal como se pode verificar nas linhas de A queda do Céu, pode ser caracterizado como uma diplomacia, deve-se atribuir a capacidade de transitar entre as esferas da natureza e da sobre-natureza, do humano e do não-humano.

Esse modo de compreensão da imagem é amplamente descrito nos estudos etnográficos dos povos indígenas da Amazônia, como se pode verificar em O belo é a fera: estética da produção e da predação entre os Wayana em que antropóloga Lucia Hussak van Velthem, analisando o sentido da pintura corporal no povo  Wayana mostra que na cosmovisão desse povo em particular “o cosmo é povoado de elementos corpos que são providos de um revestimento, genericamente reconhecido como pele, pitpë[9]de modo que a decoração corporal permite distinguir diferentes domínios da natureza e da sobrenatureza: o pontilhado reproduz a pelagem da onça; a decoração listrada é a expressão da pele da serpente primordial. Esse exemplo constitui bem a ideia de como esse mundo imagético invisível ganha uma tra-dução no mundo visível, pois, o grafismo pode se dar tanto na pele das pessoas, como, nas palavras de Kopenawa na “pele de imagens”, as folhas em que os brancos fazem o seu “desenho de palavras”, tal como ele define a escrita.   

Segundo Kopenawa, todos os seres da floresta possuem uma imagem utupë, que constitui o “verdadeiro interior” que remete à de todos mítica primordial dos seres. São essas imagens que junto aos xapiri os xamãs “fazem descer”[10], proporcionando uma experiência visual. Nesse sentido, deve-se afastar a ideia de que se trata de uma “imagem mental”, pois trata-se de uma realidade externa e tangível ao xamã e que ademais ao mesmo tempo em que ele a olha, também é olhado por ela. 

No entanto, se é possível dizer que a imagemé a imagem dos xapiri, deve-se dizer também que utupë tem um espectro semântico mais amplo que Bruce Albert explica bem: Ela se torna assim “imagem espírito” xamânico. Utupë designa também reflexo (na água nos espelhos), a sombra que se traz, o desenho, a fotografia, as reproduções (brinquedos, miniaturas). Utupa sipë (“peles de imagens”) designa os jornais e as revistas[11].

Nessas variações relatadas por Albert em que utupë tem um sentido próximo daquele que os brancos utilizam: a imagem fotografia, a imagem refletida no espelho, etc., a noção que inicialmente refere-se ao âmbito invisível, tal como caracterizei acima, passa a expressar o âmbito da visualidade, o que não retira aquilo que acredito ser seu sentido forte, a saber, a transposição do que é invisível para os brancos e não-xamãs para o âmbito da visualidade. 

Naturalmente, há muitas consequências a serem retiradas dessa linha de interpretação que serão desenvolvidas em outras oportunidades. Nesse sentido, sem poder aprofundar-me, gostaria apenas de colocá-la em contraposição a um outro caminho de leitura no campo filosófico da noção exposta em A queda do céu. Não se trata aqui, como ocorre em Extramundanidade e sobrenatureza: ensaios de ontologia infundamental de Marco Antonio Valentim, de mobilizar a imagem utupë como aquilo a partir da qual, dentro do quadro de uma ontologia ameríndia, seria possível pensar a dimensão do “infundamento”. Com todo direito, um esforço hermenêutico pode muito bem retirar essa questão de A queda do céu, mas parece-me que ela refere-se muito mais a uma preocupação do pensamento de Heidegger – filósofo a quem o professor da Universidade Federal do Paraná quer contrapor a Kopenawa – do que do próprio autor de A queda do céu que ao longo do livro trata de temas como a diplomacia, fim do mundo, mercadoria, dentre outros. Desse modo, eu diria que há uma sobre-interpretação no sentido de extrair a questão do infundamento para forçar um diálogo com o filósofo alemão.

Esclareço, contudo, que meu interesse aqui é menos criticar essa interpretação do que marcar o meu posicionamento: não se trata de buscar na imagem utupë um operador a fim de construir uma ontologia geral, mas, de modo mais modesto, pensá-la dentro de um regime da imagem ao qual se pode comparar outros regimes.

Antes de concluir esta parte, gostaria de mencionar o que seria uma variante “profana” disso que chamo de imagem xamânica, mobilizando a formulação do artista falecido precocemente em 2021, Jaider Esbell, que foi um dos responsáveis pela criação do que ficou conhecido com o nome de “Arte indígena contemporânea” que, em linhas gerais, consiste na defesa da inserção da arte indígena, com o intuito de alcançar visibilidade para esta expressão, no circuito da arte contemporânea, como foi o caso da exposição de artistas indígenas, que  faziam dialogar princípios estéticos tradicionais indígenas com a linguagem da arte contemporânea, na 34ª. Bienal de São Paulo no segundo semestre de 2021.  Segundo o artista da etnia Macuxi, a arte indígena é uma “armadilha psicodélica”, que significa nada mais nada menos do que a maneira como o artista indígena pode se inserir em um universo, completamente diferente do dele, dominado pelo sistema capitalista e ainda assim expor sua arte, mantendo seus valores: “a única possibilidade que a gente tinha de acessar esse mundo capitalista era por meio da extrema subjetividade, no mundo da camuflagem, da estratégia de linguagem.”[12] O próprio Esbell, mas também outra artista de sua geração, Daiara Tukano, valem-se, em seus trabalhos, do resgate do rituais da ayahuasca na mesma lógica de transpor a esfera do invisível tal como exposto com relação à imagem xamânica. Além de artistas indígenas, essa versão profana da imagem xamânica influencia artistas brancos, que têm uma trajetória consolidada no circuito internacional da arte contemporânea, como por exemplo, Ernesto Netto.

***

As ideias expostas nesse artigo, como é possível notar em uma leitura atenta, estão em estágio embrionário de modo que naturalmente críticas e apontamentos são muito bem-vindos para que elas ganhem uma densidade teórica maior. A ideia é que as questões colocadas aqui sejam futuramente desdobradas com a pretensão de alcançar uma contribuição que seja relevante para o pensamento sobre a questão da imagem.

Pedro Hussak

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

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[1] Disponível em

<https://www.youtube.com/playlist?list=PLsuhcaNxdhaTGThTMLN6AqgMT5ZN1n4oU>

[2] RANCIÈRE, Jacques. Partilha do sensível, 2. ed. Trad Monica da Costa Netto, São Paulo, 34, 2009, pp. 29-46. 

[3] FAROCKI, Harun, Desconfiar de las imágenes, Trad. Julia Giser, Buenos Aires, Caja Negra, 2015.

[4] MONDZAIN, Marie-José, Le commerce des regards, Paris, Seuil, 2003, p. 17.

[5] BENJAMIN, Walter.  Obras escolhidas volume 1, magia, técnica, arte e política. Trad. Sergio Paulo Rouanet, São Paulo: brasiliensese, 1985, p.230.

[6] Descola faz essa afirmação em entrevista à philosophie magazine, publicada em 16 de agosto de 2021. Disponível em <https://www.philomag.com/articles/philippe-descola-rendre-visibles-des-choses-invisibles>, acessado em 30/01/2022.

[7] Ibdem

[8] HIRANO, Luis. Difrações preliminares sobre os desenhos na “Queda do céu”. Texto apresentado no seminário “Sonho, mercadoria, mundo: três hipóteses para pensar A queda do céu”.

[9] VELTHEM, Lucia, O belo é a fera: estética da produção e da predação entre os Wayana, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003, p. 236.

[10] KOPENAWA, Davi & ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Trad. Beatriz Perrone-Moisés, São Paulo, Companhia das letras, 2015, p. 116.

[11] ALBERT, Bruce & CHANDÈS, Hervé (eds.). Yanomami – L’esprit de la forêt, Paris, Fondation Cartier/Actes sud,p. 47. Apud VALENTIM, Marco Antonio. Extramundanidade e sobrenatureza: ensaios de ontologia infundamental, Florianópolis, Cultura e Barbárie, 2018, p. 220.   

[12] Declaração dada em entrevista à Deutseche Welle, publicada em 04/11/2021. Disponível em <https://www.dw.com/pt-br/a-armadilha-psicod%C3%A9lica-de-jaider-esbell/a-59717656>, acessado em 30/01/2022.