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GABRIELA WONDRACEK LINCK / Pandemia e Nostalgia

GABRIELA WONDRACEK LINCK / Pandemia e Nostalgia

Woche der Kritik 2021 e o eterno retorno da experiência VHS

O que é o cinema hoje (e sempre) se não um sonho no meio do pesadelo? Seja sozinho em casa ou na sala escura entre amigos e/ou estranhos, a ideia de assistir a filmes esteve sempre ligada à desassociação do realismo da vida diária. O cinema, tal como apresentado na Woche der Kritik 2021, evoca em nós a força da memória (daqueles filmes feitos com o celular, sobre entes que amamos) ou do sonho (de tantos filmes aparentemente vazios de sentido, mas bem empacotados pela perfeição da técnica e da estética). Hoje, sentada à mesa da cozinha, com a cara tensa e um café na mesa à frente do peito dividido pela linha reta da toalha, pensei que esta cena é recorrente em muitos filmes e que, em geral, acaba bem. Isso me reconfortou. Não estava pensando em filmes bons ou ruins, estava pensando: o cinema. E ele é reconfortante. Ele busca, no sonho ou na memória, este conforto da intimidade.

E não parece coincidência que andem por aí surgindo cada vez mais estudos acadêmicos sobre cinema e nostalgia. No conetexto alemão, há a recente tese de doutorado de Karin Fleck (Goethe Universität, Frankfurt, 2020) concernente aos filmes High Fidelity e Almost Famous, entre outros. A autora argumenta que enquanto tais filmes lidam com concetios de nostalgia, focando em uma perspectiva musical, eles também tendem a priorizar uma tática de popularização de tecnologias de mídia anacrônicas, por meio das práticas de seus personagens (o uso de VHS, fitas e tocadores de K7, por exemplo). Podemos também pensar em séries como Stranger Things da Netflixou no filme brasileiro Passagem Secreta, apresentado no festival de Tiradentes online deste ano. São obras que reconstroem o imaginário e as práticas dos anos 1980 e 1990.

Aqui parece interessante o argumento de que o cinema, enquanto filme, fortaleceria o caráter individual (daquele que conserva suas preferências do passado a unhas e dentes) do ser humano que vive em uma época de excessos virtuais e midiáticos, onde a identidade própria muita vezes se perde num mundo dominado por processos estéticos criados pela máquina. O que constitui este ser humano individualizado pela nostalgia? São os seus gostos pessoais: o seu passado, o que se gostava e valorizava em determinada época, o cinema como todo um aparato audiovisual para emular ou reconfigurar os clássicos de um passado recente. E clássicos que se tornam clássicos cada vez mais rápido. Curiosamente, o filme mais instigante da Woche der Kritik, chamado Letter From Your Far-Off Country, de Suneil Sanzgiri, é um «Desktop Film» que personaliza os processos audiovisuais dominados pelo computador, misturando imagens em 16mm com imagens de celular e imagens de Google Earth, e usando táticas de colagem que envolvem janelas de mensagens instantâneas, e uma espécie de estudo imagético da incoerência, por meio do desmantelamento da definição de pixel. No fim das contas, por mais estranho que possa soar, o filme nos lembra Jonas Mekas, ou mesmo Aby Warburg.

A Woche der Kritik (em português: Semana da Crítica) é um festival que ocorre paralelamente a Berlinale desde 2015, e que, em 2021 teve sua primeira edição online. A ideia da Semana da Crítica é fomentar conversas estéticas e políticas, a partir de filmes selecionados por curadores ligados a Verband der DeutschenFilmkritik (Associação de Críticos de Cinema da Alemanha). O festival durou uma semana, dividido em 7 programas diferentes, incluindo filmes e debates. Além disso, o festival contou também com uma conferência de abertura dividida em duas partes, sobre coerência e incoerência no cinema, na qual o diretor (que eu chamaria de Jonas Mekas do Desktop) Suneil Sanzgiri ministrou uma palestra ao estilo Power Point que (por que não?) também poderia ser considerada um filme. Na palestra, Sanzgiri esmiuçou os conceitos de coerência e incoerência sob uma perspectiva filosófica, ilustrando suas explicações com cenas de seu «Desktop film». Mais uma vez: um sonho no meio do pesadelo. E aquela sensação de que não

somos os únicos que nos sentimos no vácuo entre a coerência e a incoerência: a arte também não sabe como se comportar, os cineastas não sabem a que vieram, o que nos resta é fazer perguntas.

Durante a conferência de abertuta foram exibidos, fora dos programas da Woche der Kritik e com acesso gratuito, os filmes Ears, Nose and Throat, de Kevin Jerome Everson, e Alone, de Garrett Bradley. O primeiro intercala de forma quase poética imagens de câmeras de segurança (tendência, aliás, bem acentuada dos filmes da Woche der Kritik 2021) com imagens de uma mulher que relata, em voz off, uma situação de assassinato e abuso de poder, enquanto examina os ouvidos, o nariz e a garganta. Alone é sobre uma jovem e seu sofrimento, enquanto espera que o noivo possa finalmente sair da prisão para que eles se casem. Somos defrontados com suas conversas com a advogada e as brigas com a família, mas, sobretudo, com as imagens de desolação de uma mulher que, nas palavras da diretora, não tem com quem identifcar seu sofrimento. Em épocas de Podcasts para amenizar a dor, «não existem Podcasts sobre a solidão de alguém que espera o namorado sair da cadeia» (Garret Bradley).

Filmado antes da Pandemia, entretanto, Alone se tornou um filme que dialoga com a solidão de muita gente. Imagens de sombras e texturas de roupas de cama, cobertores e mãos cansadas segurando aparelhos eletrônicos – é o que fica na memória de tais imagens de angústia. Já Ears, Nose and Throat é um soco no estomago. O diretor fez o filme para lidar com a morte do próprio filho, e o peso da dor é sentido no embate da coerência fria e exacerbada dos exames médicos, quando confrontados com a incoerência dramática do racismo e da violência nos Estados Unidos. Uma incoerência contra a qual nenhum tratamento paliativo é eficaz. É como a morte anunciada da fé na ciência e na lei e o desabrochar de um cinema de vísceras rasgadas, calcado no fracasso da humanidade.

Na palestra de abertura, a crítica de cinema Ruby Rich falou de crítica cinematográfica enquanto «osmose social». Segundo ela, cinefilia nada tem a ver com cinema, cinefilia é apenas culto. Porém, para que o cinema não seja um aparato de culto, é preciso que a gente se misture, é preciso troca e empatia com o lugar do outro. E a Woche der Kritik permaneceu, neste sentido, ligeiramente aquém das possibilidades vislumbradas por Rich. Já no primeiro programa, Auf Spuren, o chileno The sky is red foi bombardeado por uma crítica austríaca, que sentiu falta de mais didatismo no filme de Francina Carbonell. É curioso como se pode criticar o próprio eurocentrismo e, no mesmo discurso, exigir de um filme latino-americano que informe melhor o público europeu sobre os incêndios carcerários do Chile, ao invés de «mostrar exaustivamente a fumaça». No entanto, a fumaça é justamente a única certeza do filme: o resto é risco, coragem (da equipe), medo e incerteza perante as injustiças da América Latina.

Ainda a respeito de eurocentrismo, foi curiosa a resposta do diretor mexicano Nicolas Pereda (apresentando seu filme Fauna) quando elogiado pela audiência. Ele considerou o elogio de que seu filme levaria o estilo de Philippe Garrel a outro e melhor nível como «ultrajante». O que faz-nos pensar se os mexicanos sofrem, talvez, da similar síndrome de vira-lata do brasileiro, famoso por não conseguir aceitar que reconfigura e supera suas influências. E, claro, também confirma que Garrel é um diretor superestimado (principalmente fora da Europa). De qualquer forma, Fauna é um filme ímpar, tanto pelas atuações, como pela trama a la David Lynch e os ângulos ao estilo Lucrécia Martel.

Outro não-europeu que emula influências internacionais é o japonês Red Post on Escher Street, do polêmico Sion Sono, filme que acompanha um casting meio surreal de atrizes. Este filme é, como comentei no debate, um misto de Kurosawa, com cores de Takashi Miike ao ritmo de Sailor Moon(o desenho). Logo, uma emulação de japoneses que já emulavam os norte-americanos faz tempo. Um filme estranho, no mínimo. O crítico Patrick Holzapfel comentou no debate seu desafeto pelo tipo de excessos beirando a misogenia de Sion Sono, e fez uma bela regressão aos excessos de Fellini (lá vem ele, o eurocentrismo outra vez) para definir o que seria um excesso cinematográfico louvável.

Outro filme que causou polêmica foi o indiano Watch over me, um autêntico excesso de sofrimento audiovisual. Um ótimo manifesto sobre a falta de medicamentos paliativos para pacientes terminais na Índia, é verdade, mas, enquanto experiência fílmica, uma verdadeira tortura, e extremamente desrespeitoso com seus personagens. Acredito que a família das personagens envolvidas não gostaria de lembrá-las daquela maneira, confio que estas personagens foram mais do que doentes terminais indianos com seus corpos exibidos por 140 minutos num festival alemão de vanguarda.

Ao contrário de Watch over me, para a nossa sorte de espectadores, os curtas tunisianosdo mesmo programa:Foyer, de Ismaïl Bahri; Oumoun, de Fairuz Ghammam e El Moïz Ghammam; e This day won´t last, de Mouaad el Salem, rejeitam a intimidade do sofrimento e optam por uma intimidade política, afetiva e artística. Foyer acompanha as vibrações de uma folha de papel que permanece na frente da câmera, o tempo todo. É um filme de sons e vento. Um filme incoerentemente belo. Honesto. This day won´t last,por sua vez, é otestemunho de um homossexual vivendo em uma Tunísia que deveria estar longe do autoritarismo e do preconceito (depois da Primavera Árabe), mas parece muito longe disso. É sobre um geração que deseja fugir de seus lugares de origem. Uma geração que não se sente aceita em parte alguma.

E sobre não se sentir aceito em parte alguma é também o sensível First in First out, no qual um filho filma o pai árabe ao longo de sua vida. Um pai que fora quase deportado da Alemanha por motivos burocráticos e incoerentes, e hoje trabalha no aeroporto de Hamburgo, preparando a comida daqueles que serão de fato deportados. Este filme é sobre a roda de Sísifo com a qual todo o imigrante e todo o profissional não eurocêntrico se confronta. Sobre como perdemos por vezes o respeito por nós mesmos, para nos adaptarmos aos sistemas econômicos de uma sociedade enferma.

A respeito do debate deste filme, ao lado de seu companheiro de programa, Intimate Distances, é por vezes desconcertante notar como críticas mulheres e latino-americanas se rendem a esta roda de Sísifo do comportamento crítico eurocêntrico: o desejo de debater e a insistência do debate foi rebatido em tom de deboche pela moderadora (e vejam só: uma curadora de cinema africano). O direito de imagem de pessoas que são filmadas sem nenhum respeito na rua (e não me refiro a multidões. das quais o cineasta por vezes capta um rosto ou uma silhueta reconhecível de relance) não parece um assunto relevante para os debates de cinema. O ser humano é transformado em objeto fílmico sem pudores (contra ou alheio ap conhecimento da utilização de sua imagem) e ninguém se importa, porque, veja bem, o que seria da história do cinema sem este desrespeito, certo? O que seria de Chris Marker? Então podemos concluir que é execrável utilizar corpos de mulheres como objeto, mas compreensível filmar aleatoriamente corpos masculinos musculosos em nome de um filme de arte ou experimental (entre muitas aspas). Este tipo de posição parece combinar bem com o novo cacoete teórico do curador enquanto aquele que cuida. Mas, cuida de quem, cara pálida?

Existiria uma dicotomia entre um público doente e um curador sueperpoderoso que ajuda o espectador a «ver melhor»? Isso lembra-nos, talvez, os velhos contos de Grimm. «E pra que estes olhos tão grandes, vovózinha?»,«São pra te ver melhor, minha netinha!». No entanto, a vovózinha era, na verdade, o lobo mau. É claro que pode se pensar que os curadores curam alguns filmes de sua obscuridade, por exemplo. Mas os tiram da obscuridade para quem, e a favor de quem? É impossível pensar em uma curadoria que cuida de filmes e diretores (no sentido de heal) subtraindo o fato de que existe um público. Aliás, o que parece sintomático é o desejo de endeusar o curador e subestimar a audiência. Tomemos, por exemplo, os debates online da Woche der Kritik: com raras exceções, os críticos e curadores foram extremamente individualizados (como se chamam, o que fazem), enquanto as perguntas de indivíduos da audiência foram referidas simplesmente como «perguntas da audiência», como se esta audiência fosse uma instância amorfa, distante, desinteressante. E, na verdade, talvez realmente o seja, em uma época pandêmica, onde o sucesso se traduz em número de views.

Tudo isso me remete ao último filme do festival: Freizeit, oder das Gegensatz von Nichts Tun, de Caroline Pitzen, acompanha as conversas políticas de um grupo de adolescentes que pouco agem e muito falam. O filme, que talvez se encaixe na esteira de outros teen movies alemães que remetem à alienação, como Ping Pong ou Entardecer, (e que se aproxima de Muito Romântico ao tocar na temática da gentrificação em Berlin de forma quase poética) traduz muito das raízes da atitude geral, que beira a arrogância, de alguns seguimentos da academia e da crítica de cinema alemã – vem de longe, vem de uma pedagogia que ensina jovens a pensarem que pensam melhor do que todos os outros e de que o pensamento, por si só, é louvável e frutífero na sociedade. Afinal, estar do lado certo já seria o bastante. No entanto, já dizia o ditado, estar perfeitamente adaptado a uma sociedade doente nao é um sintoma de saúde. E este é, por sinal, exatamente o ponto do filme Horse Tail(também exibido na Woche der Kritik 2021), uma fábula absurdista sobre um homem que não se encaixa em uma sociedade que não parece menos insalubre do que ele, lembrando filmes de Patchwork como Macunaíma ou, mais recentemente, Doce Amianto. «É preciso procurar no sonho o que se perdeu na memória», diz o protagonista, que acorda com um rabo de cavalo. «Me diga o seu horóscopo e podemos resolver isso! Qual é o seu horóscopo?», pergunta o oráculo compulsivamente.

Compulsão é outra palavra que vem à mente sobre a Woche der Kritik 2021: a compulsão por imagens de câmeras de vigilância e de celular, a compulsão pela praticidade e pela nostalgia dessas imagens pixelizadas que nos remetem ao verde e roxo dos filmes em VHS. A compulsão de ir à locadora de vídeos e locar 5 filmes de uma vez só. No Brasil, toda uma geração de diretores crescidos ou amadurecidos nos anos 90 (como Juliano Dornelles e Kléber Mendonça Filho) admitem terem sido influenciados por essa experiência da intimidade caseira com os filmes, e hoje, em meio à Pandemia, a enxurrada de festivais online remete-nos cada vez mais a essa experiência. A alienação completa do mundo lá fora, proporcionada pela sala escura ou ainda pelas enormes telas dos IMAX, foi substituída por essa volta dos filmes à intimidade do lar, em tamanho reduzido.

Fazendo um breve retorno à segunda parte da conferência de abertura da Woche der Kritik deste ano: talvez não só o ser humano precise diminuir sua taxa de crescimento para se tornar mais saudável (este foi o tema da palestra de Arne Hendriks partindo de The Incredible Shrinking Man), mas também as nossas experiências subjetivas precisem ser relativizadas quanto aos seus formatos. Humanos grandes são humanos saudáveis? A ciência parece ter provado que não. E o que parece não ter nada a ver com o assunto talvez seja o mecanismo da roda cinematográfica: desmisitificar crenças e dar lugar a outras. Nao é sobre o que é melhor (um filme honesto e sensível feito com um celular versus um filme tecnicamente perfeito sem conteúdo inteligível; uma tela grande versus uma tela pequena), mas sobre os sintomas dos nosso valores, que estão sendo virados do avesso.

Gabriela Wondracek Linck