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ANGELA PRYSTHON / As furiosas frivolidades do cinema brasileiro de ficção científica: distopias e heterotopias urbanas

ANGELA PRYSTHON / As furiosas frivolidades do cinema brasileiro de ficção científica: distopias e heterotopias urbanas

Eu gostaria de começar explorando o título deste artigo, sobretudo a partir da palavra frivolidade. O termo “frívolo” quase que invariavelmente nos remete à bobagem, ao supérfluo, àquilo que é despreocupadamente agradável. A frivolidade nas teorias sócio-culturais quase sempre esteve associada ao lazer das classes mais abastadas (Bates e Fortner, 2013, 3). Ou seja, uma espécie de universo de inócuas fantasmagorias, de frufrus desnecessários, de ornamentos excessivos, de tolices engraçadas ou “bonitinhas”, de boutades non-sense, de fantasias camp ou delírios inconsequentes dos bem-nascidos e nutridos. O que me interessa, contudo, na frivolidade é como ela pode ser um elemento desestabilizador de certos discursos cristalizados, como ela faz emergir o potencial radical e autorreflexivo do artifício.

No texto “In Praise of Frivolity”, sobre o cinema de Elia Suleiman, Hamid Dabashi parte de um comentário sobre o humor sombrio e absurdo dos filmes do cineasta palestino para relacionar a noção de frivolidade a um sofisticado conceito de resistência e militância políticas no audiovisual, ligado à ordem do artifício, da fantasia e do humor. No caso, o cinema de Suleiman estaria trazendo à tona “a frivolidade como a versão nobre da obscenidade, já que a obscenidade é a versão degenerada da frivolidade”(Dabashi, 2006,136) . Nos seus termos, “o cinema de Suleiman seria a vingança do riso alegre sobre a mentira obscena” (Idem, 135). Mais do que estabelecer correlações entre Suleiman e os filmes do cinema brasileiro contemporâneo – tema deste artigo –, interessa-nos tomar a ideia de frivolidade (elemento “inócuo”, como amenidade, como tolice e superfluidade) como um desestabilizador do real e de como a frivolidade pode ser uma estratégia narrativa que se impõe como crítica e como discurso político paradoxalmente através do artifício.

A frivolidade cinematográfica está classicamente associada ao mundo do entretenimento e aos padrões do cinema de gênero. E, nesse sentido, quase sempre demonizada como algo menor, como algo a que “falta densidade”:

É quase com culpa que nos debruçamos sobre os universos da cultura pop, sobre os objetos mais “desprezíveis” e banais da indústria cultural. Pelo menos no que se refere ao território acadêmico, o entretenimento é ainda demonizado como o avesso da educação, como o extremo oposto do conhecimento, como o outro da alta cultura. Quase que imediatamente é feita a equalização entre entretenimento e frivolidade, entre cultura pop e superfície, e, fundamentalmente, entre os elementos que compõem esta camada de objetos e a cultura de consumo. (Prysthon, 2014, 56)

Por isso, parece-me sempre relevante recuperar a guinada utópica que o entretenimento ganhou na década de 1980 a partir de Richard Dyer e seu texto sobre os musicais:

Duas das descrições já naturalizadas de entretenimento, a saber, ‘fuga’ e ‘realização de desejos’, apontam para o seu ímpeto central, utopismo. O entretenimento oferece a imagem de um ‘lugar melhor’ para ir, ou algo que queremos profundamente e que nosso cotidiano não nos pode prover. Alternativas, esperanças, desejos – esse é o domínio da utopia, a noção de que as coisas podem ser melhores, que algo distinto do que está aí pode ser imaginado e talvez até realizado (Dyer, 2002, p. 20).

Claro que no campo dos estudos fílmicos há uma longa tradição de leitura do cinema o a partir de chaves mais abertas (desde Benjamin, por exemplo), de perspectivas que buscam superar as dicotomias alto e baixo, popular e erudito, cinema de mercado e cinema de autor, etc. Questões de espectatorialidade e a emergência de novas sensibilidades. Mas a chave do entretenimento como utopia, tal como proposta por Dyer, então, revela justamente a potência do artifício e da frivolidade como um campo de paradoxos fundamental para compreender o cinema contemporâneo. Vários autores, além de Dyer, vêm buscando entender essa equação a partir de categorias estéticas novas ou renovadas: Sianne Ngai e os “pateta, fofo e interessante” (zany, cute, interesting) (2012), Rosalind Galt e o lindo (pretty)(2011), Denilson Lopes e o delicado (2007), Colin MacCabe e a eloquência do vulgar (1998), eu mesma (2014) e André Antonio Barbosa (2015) e os contornos da frivolidade.

No cinema brasileiro contemporâneo, tais noções e conceitos também me parecem instrumentais, sobretudo num momento em que o realismo preponderante da década de 2000, tanto no cinema mais mainstream, como nas visões mais alternativas, cede lugar a narrativas mais ambíguas, a uma espécie de “realismo sob rasura”. Ou seja, o artifício, a frivolidade como estratégia para dilacerar, sublinhar e criticar o real (e aqui gostaria de ressaltar que não quero dizer que na década passada não tenha havido filmes que elaboraram tais estratégias, mas falo aqui de predominâncias e maiores recorrências). Fiquei pensando em como existe uma espécie de choque em alguns filmes: choque deliberado entre o realismo e o artifício excessivo que desarticula e desestabiliza os efeitos de real pressupostos em plots mais banais. Tal embate é possivelmente o que põe a nu o dispositivo cinematográfico, sem, contudo, descartá-lo, ou seja, sem descartar a ilusão, sem abandonar o artifício – filmes imbuídos de artifício, de ilusionismo, mas que estão permanentemente pondo à prova a própria ideia de ilusionismo.

Há vários exemplos do que poderíamos chamar de novo “artificialismo” do cinema brasileiro, ou mesmo de uma revitalização do cinema de gênero (o musical, o horror, o filme biográfico, o filme “espírita” e, sim, mesmo as comédias da Globo Filmes). O exemplo que gostaria de trabalhar aqui, contudo, vai focalizar a emergência e consolidação da ficção científica no (ainda chamado) cinema de autor contemporâneo – ou que alguns autores chamam de “novíssimo cinema brasileiro” (ou seja, evidentemente de modo um pouco distinto do cinema de mercado – mas não me ocuparei deste nicho aqui) em contraste com o realismo preponderante da década de 2000. O cinema brasileiro recente tem, pois, trazido à tona com uma frequência contundente “versões” do real a partir de temporalidades estranhas, diferentes, dissonantes. Temporalidades que desfiguram e transfiguram o real. Filmes como Branco sai, preto fica (Adirley Queiroz), Brasil S.A. (Marcelo Pedroso), Medo do escuro (Ivo Lopes de Araújo) ou Batguano (Tavinho Teixeira), todos eles lançados em 2014, aderem, de maneiras muito distintas entre si e em diferentes graus e níveis, ao artifício para elaborar sobre o real, criando heterotopias, estabelecendo mundos alternativos. São filmes que se utilizam de certas convenções do gênero ficção científica mais pelas possibilidades que os artifícios utilizados têm para provocar fissuras, para encontrar soluções estéticas emancipatórias para problemas de ordem política.

Uma das portas de acesso teóricas a esse universo da ficção científica foi a obra fundamental de Fredric Jameson, Archaeologies of the Future, na qual o autor americano mapeia o fenômeno da Utopia através das suas mais variadas manifestações. O que nos parece crucial nesse trabalho, além do impressionante rigor através do qual descreve e critica os vários modelos de utopia da literatura e da ciência política, é justamente o modo como ele aborda a natureza problemática e ambígua da representação da utopia. Algo que me parece plenamente associável com algumas das proposições implícitas nesse conjunto de filmes, embora a maioria deles se refira mais exatamente a distopias que a utopias.  A representação nesses filmes é marcada pela ideia de transfiguração ou desfiguração do real que é utilizada justamente para criar mundos (ou realidades) alternativos. Curiosamente, muitos deles se valem de uma acentuação do real, ou de um leve desvio do real, para ou propor novos mundos (a revanche de Branco sai, preto fica, por exemplo) ou para mostrar realidades aberrantes (Brasil S.A. e Medo do escuro).

Além desse imaginário utópico-distópico, parece-nos essencial pensar o gênero ficção científica nessa sua encarnação mais alternativa do cinema brasileiro contemporâneo como um elogio do artifício, como uma afirmação da imaginação sobre a realidade, nesse sentido, trazendo à tona do ponto de vista formal uma série de estratégias estilísticas marcadas pela nostalgia (reminiscências do cinema experimental dos
anos 70, por exemplo, emBatguano e Medo do escuro), pelo barroquismo visual (Brasil S.A.), pelo anti-naturalismo, pela encenação empostada, pelos excessos performáticos e pela forma de tornar estranhos espaços (cidades, paisagens, ambientes) muito
familiares. Todos esses elementos nos levam a argumentar que talvez a característica mais interessante e paradoxal desses filmes seja que todos eles articulam muito intensamente a política a partir desse gênero normalmente considerado menor e mais afeito ao entretenimento. Ou seja, a partir do que poderíamos pensar como uma “furiosa frivolidade”, construída com uma atenção muito dirigida a elementos como figurino, direção de arte, cenografia, ou seja, os detalhes, os filmes propõem potentes heterotopias fílmicas, exercícios de resistência ao real ou premonições sombrias, e se revelam extremamente pertinentes para pensar o contemporâneo.

Medo do escuro, ou as ruínas performatizadas

Para começar meus rápidos comentários sobre cada filme, escolhi o mais recente deles e talvez o menos conhecido, Medo do escuro. O filme foi exibido publicamente poucas vezes, tendo estreado nacionalmente no Festival de Tiradentes em 2015. Uma das razões para essa pouca visibilidade, é que o filme se constitui como performance, já que grande parte do seu trabalho sonoro é feita ao vivo, com músicos e djs.

O filme de Ivo Lopes de Araújo mostra a deambulação de um homem pelas ruínas pós-apocalípticas de uma cidade brasileira não identificada. O filme foi realizado em Fortaleza, mas há poucas marcas reconhecíveis do lugar. Paradoxalmente, o modo como a cidade aparece no filme é fundamental para sua construção. A cidade do filme é uma ruína distópica, um lugar escuro, nublado, esfumaçado. Essas imagens de ruínas, de desolação parecem desfigurações ou transfigurações da Fortaleza real, por outro lado, elas são muito evidentemente Fortaleza, inclusive como comentário furioso sobre o caos urbano brasileiro. 

Medo do oscuro

O que chama mais atenção em Medo do escuro, contudo, são os modos de articulação dessas imagens distópicas, contraditoriamente marcadas por uma nostalgia imagética. O filme reúne muitas referências (diretas ou indiretas) a muitos outros filmes e estéticas. Sua linguagem é por vezes evocativa do cinema experimental dos anos 1970. Penso, por exemplo, em Derek Jarman, na experiência do Super 8 do cinema em Pernambuco, nomes como Jomard Muniz de Brito. Há traços de Mad Max nos seus escombros. É possível também associá-lo com algumas imagens de A Idade da Terra de Glauber Rocha. Na performance do protagonista pode-se perceber uma vaga semelhança com as deambulações de Carmelo Bene em Nossa Senhora dos turcos. Nos figurinos pode-se intuir um desejo de proximidade com os excessos bizantinos de A cor da Romã, de Sergei Paradjanov (evidentemente com todas as limitações de um filme de baixo orçamento brasileiro).

Medo do escuro 

Todas essas influências que enxerguei no filme (e que talvez nem estejam voluntariamente lá, mas o filme me fez retornar a elas), além dessa característica da trilha ao vivo, conferem um ar barroco ao filme, dão esse aspecto retrofuturista à imagem. Uma espécie de plasticidade simultaneamente nostálgica e arrojada que afirma categoricamente o retorno do artifício e o elogio da frivolidade como bases para a criação de outros mundos através do cinema.

As paisagens artificiais da heterotopia de Brasil S/A

Brasil S/A é uma espécie de síntese, de painel exacerbado dos vários problemas sobre o espaço no cinema pernambucano contemporâneo. O filme encampa um modo alegórico de falar sobre a paisagem, sobre a ideia de uma pós-utopia permeando o Brasil. Ele busca reunir todas as questões urgentes da política brasileira como uma espécie de programa, de manifesto. Uma alegoria semi-futurística, um apocalipse brando e enigmático: como se fosse impossível escolher entre sonhar uma utopia ou representar totalmente o pesadelo de uma distopia. Por isso também a dificuldade de enquadrar o filme sob o rótulo de um gênero, por isso essa sensação de estarmos diante de um documentário freak ou uma ficção científica extremamente entediante e plotless.

  Brasil S/A

Há uma afetação da paisagem, uma dramatização da paisagem, alcançada tanto pelos modos grandiosos de enquadrar esses espaços, como pela pontuação da música pomposa de Mateus Alves. O artifício e o deslocamento vão desfigurando as imagens mais corriqueiras do presente, mesmo a arquitetura mais banal da classe média alta recifense. Alguns planos-sequência poderiam ser reminiscentes do filme Soy Cuba (Mikhail Kalatozov, 1965), no seu afã de demonstrar o progresso (claro que no caso de Brasil S/A essa demonstração é totalmente irônica) e filmar esse ponto de vista macro, mas em lugar da câmera infravermelha que tornava a textura das paisagens filmicamente peculiares, em Brasil S/A é a mise-en-scène que transfigura os espaços. Por exemplo, nas cenas de canavial, nas quais os trabalhadores usam uniformes parecidos com astronautas ou uma mulher rege uma espécie de balé de tratores (algo que Pedroso já havia ensaiado no seu curta “Em trânsito”, 2013). A ideia da coreografia das máquinas (caminhões levando tratores pelas estradas) reforça essa oscilação genérica – documentário sob rasura e ficção científica sem ficção.

Brasil S/A

O filme torna tudo o que é familiar estranho: engarrafamentos no trânsito, cortadores de cana, propaganda de uma empresa de segurança. E até mesmo os personagens de uma dança folclórica nordestina são desfigurados pelo deslocamento, pela afetação: um excêntrico e suado maracatu é encenado na Academia Pernambucana de Letras como um balé europeizado. O final se aproxima do estilo apresentado no filme Nosso Lar (Wagner Assis, 2010), filme “espírita” sobre o mundo do além. Uma mistura desse imaginário brega-religioso de Nosso lar com o estilo igualmente brega de propaganda de imobiliária. Uma imagem chapada, feia, rasa. Tão ostensivamente grotesca que talvez também revele algumas limitações técnicas do filme, sobretudo no que se refere aos efeitos especiais. Mas de todos os filmes do nosso conjunto, Brasil S/A talvez seja aquele que melhor representa a noção de heterotopia: um lugar que refere e reflete outros lugares, que “tem o poder de justapor em um só lugar real vários espaços, vários posicionamentos que são em si próprios incompatíveis” (Foucault, 2009, 418).

Batguano e o desbunde distópico

Assim como Medo do escuro, em Batguano também emergem algumas imagens nostálgicas e referenciadas na década de 1970, especialmente pela via do cinema experimental. Contudo, o filme de Tavinho Teixeira tem conotações bem mais pop, tem um apelo mais camp. Trata-se da apropriação da “lenda” de Batman e Robin seriam um casal e da transposição dessa história para um futuro catastrófico no qual o Ocidente teria sido quase que totalmente devastado por uma peste chamada Batguano. 

Batguano

Na sua tese de doutorado, Luiz Francisco Lacerda vê em Batguano um abraço ao artifício que se dá sobretudo na organização dos espaços cênicos, no aproveitamento dos jogos de luz, na relação da direção de arte com o posicionamento dos atores:

Em Batguano, por sua vez, a fábrica abandonada ganha ares de estúdio de cinema, contando uma floresta feita de um ajuntado de imensas plantas em jarros, um trailer que serve de quarto aos protagonistas, salas de jantar e estar montadas no espaço vazio, um buraco que faz as vezes de piscina e até uma tela de retroprojeção posicionada atrás do carro dos protagonistas. Todo o cenário é iluminado por holofotes cinematográficos visíveis em cena e decorado, novamente, com toda uma gama de elementos kitsch, estilo que está também presente no áudio incessante da televisão da sala ligada, que passa programas, filmes e comerciais antigos. (Lacerda, 2015, 155-156)

Batguano

Batguano conjuga distopia e carnaval, uma visão sombria com um barroquismo excêntrico e pop. Penso na apropriação que Jameson faz da noção do Carnavalesco em Bakhtin para falar das relações entre alegoria e ficção científica. Aí:

O momento mesmo do Carnaval – a revolução, inclusive a revolução cultural – constitui uma ruptura entre um sistema social opressivo tradicional (…) e sua substituição moderna no estado de poder barroco (…): nesta engenhosa narrativa (…), podemos observar as vantagens de uma posição utópica, da qual tanto a sociedade burguesa como o comunismo, tanto a esquerda, como a direita vão ser denunciadas (…), mas por um preço alto, a saber, a efemeralidade do momento do Carnaval em si. (Jameson, 2005, 197)

As implicações políticas dessa carnavalização também dizem respeito à sexualidade no caso de Batguano, já que sua adesão ao gênero se dá através do camp e do pop (por isso, ecos tão fortes do experimentalismo dos anos 70). A visão de futuro apresentada no filme gira em torno de uma distopia escrachada, violenta e hipersexualizada. Se o futuro é sombrio, melhor encará-lo com humor, ainda que seja furioso, tenso.

Branco sai, preto fica e a história como distopia

Toda utopia instaura uma temporalidade relacionada com o futuro: está baseada em projeções que podem ser apocalípticas ou redentoras, distópicas ou utópicas e demonstram uma enfática ambivalência em relação à história, com relação ao passado. Branco Sai, preto fica trata exatamente da natureza dessa ambiguidade. O último filme do nosso conjunto (e o mais célebre e impactante deles) é um híbrido de documentário memorialista (sobre uma tragédia ocorrida na Ceilândia, periferia do Distrito Federal, numa casa noturna na década de 1980) e ficção científica pós-apocalíptica.

Branco sai, preto fica

Em artigo sobre o filme, Cláudia Mesquita (2015) propõe a noção de “regime de historicidade” como instrumento para analisar o híbrido entre documentário e ficção científica engendrado no filme de Adirley Queirós. Apresenta de início a ficção científica como um desvio para tratar de um acontecimento real do passado e que transmutado num futuro distópico teria um efeito irônico:

Assim, entre um futuro ficcional utópico, tratado com ironia, em que a recuperação das histórias dos vencidos estaria respaldada pelas instituições (e a dívida do Estado brasileiro para com os pobres seria literalmente paga), e um passado real traumático, em que – ao contrário – os pobres tiveram sua participação e presença na cidade mutiladas pelo próprio Estado, situa-se o tempo dominante na narrativa, o “presente” de Ceilândia. (pp. 1 e 2)

Cláudia começa fazendo paralelos deste filme com o longa-metragem anterior de Queirós, A cidade é uma só? (2011). BSPF daria continuidade a um tratamento da história que contraria uma “estética do apagamento, a ruptura com o passado e a proposta desistoricizante e descontextualizante do modernismo de Brasília” (Idem, p.2). Nessa operação, em lugar de esmiuçar o passado, interpela-se o futuro (e o presente contra o qual é necessário rebelar-se) através do formidável recurso da imaginação.

Branco sai, preto fica

Também no já citado Arqueologias do futuro, Jameson vê a própria utopia como um desejo (que é aludido no próprio subtítulo do livro). Ele também elabora sobre a noção de distopia como a prima crítica da utopia, “motivada pelo ímpeto apaixonado (grifo meu) de denunciar os programas políticos utópicos” (Jameson, 2005, 199), ou seja, baseada num desejo anti-utópico. No caso de BSPF, o desejo implícito nas ações de Marquim e Sartana (os agentes do desfecho do filme) – “a revanche dos pobres” – é explodir qualquer nostalgia e qualquer utopia – passado e futuro se esvaem no mesmo instante, passado e futuro se neutralizam mutuamente, passado e futuro como disjunção crítica do presente.

À guisa de conclusão

Essas foram apenas algumas notas, algumas intuições sobre como o gênero ficção científica foi reapropriado no cinema alternativo contemporâneo no Brasil – e mais especificamente nesses cinco exemplos meio que periféricos (até por serem filmes de contextos de produção bem à margem dos grandes centros de produção cultural do país: Ceará, Pernambuco, Paraíba e Distrito Federal). Porém, além disso, é importante frisar que essa reapropriação não nos parece isolada. Como foi sugerido no início desta apresentação, a emergência dessa vertente da ficção científica do cinema brasileiro contemporâneo (pois ela é transgenérica, pois ela é “freak”, ela é rasurada e pouco convencional) revela uma curiosa contracorrente ao que foi predominante no cinema da década de 2000, que era o realismo de moldes mais tradicionais, mais enfáticos e um minimalismo estético radical (em alguns casos, a ausência de ornamentos e artifícios era tanta que se tornava uma afetação). É que o recurso ao artifício ou o que nós chamamos de frivolidade acontece quase como um desdobramento dos caminhos do cinema dos primeiros anos do século XXI: ao perceber que o minimalismo tinha de certo modo se tornado um tique, um maneirismo, a saída foi paradoxalmente abraçar um maneirismo desbragado: o frívolo, o detalhe, o artifício como antídoto para as fórmulas esgarçadas do cinema alternativo (ou aquilo que alguns chamavam de “cinema de festival”).

Isso não teria como objetivo final um esvaziamento da potência do realismo no cinema, mas ao contrário, uma exploração mais complexa das suas possibilidades. Por isso, ao nos depararmos com a frivolidade do cinema contemporâneo (seja a ficção científica dos exemplos acima, ou a sua irrupção em outros gêneros como o musical ou o horror, e mesmo o documentário), vemos, como fomos demonstrando acima, a conjunção dessas heterotopias nas quais parece estar subentendido um veemente protesto contra a contingência, mas sem nunca deixar de estar ancorada na realidade, sem nunca se furtar a comentar o presente e todas as coisas que realmente importam. A frivolidade não necessariamente se confunde com o mero escapismo, trata-se, antes, de conceber as formas mais interessantes de escapar. 

Angela Prysthon

Referências Bibliográficas

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Cláudia Mesquita, “Memória contra utopia. Branco sai preto fica (Adirley Queirós, 2014)”, XXIV Encontro da COMPÓS, Brasília, 2015. Disponível em http://www.compos.org.br/biblioteca/compos-2015-1a0eeebb-2a95-4e2a-8c4b-c0f6999c1d34_2839.pdf (Acesso em 30 de Junho de 2015)

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